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terça-feira

Corre, menina da periferia

Corre, menina da periferia
de pernas finas e mãe louca
corre pra não perder o ônibus
pra chegar bem
em casa
Tua casa é a lua, menina
Tua casa não é esta casa
Teus homens não estão entre
estes homens
Corre, pra não perder a lua
pra não perder a rua
o [ilegível] que não é teu
a beleza que te sonegam
a expressão que amaldiçoam

Corre, menina da periferia
de pernas finas e mãe louca
enquanto a lua azul do céu
recebe rituais de sabah
de mulheres de outras tribos
enquanto a psicótica e o dramaturgo
voltam para casa nesta noite
Ele de carro, ela dorme pelas ruas
Corre, que essa noite é mágica
e enquanto o ônibus atravessa
essa pista esburacada
de concreto vacilante
você pensa na maconha
e nos índios que morreram

Menina louca, de mãe periférica
e pernas longas
essa noite é toda sua
esse mundo é todo seu
Corre, mas não te apressa muito
que senão os homens pensam
que tu tá fugindo
ou que tu é louca mesmo
A sanidade e a santidade
são preservadas
quando necessário
na medida do possível
És artista: não te exijas coerência
Essa coerência que rói e tolhe
todas as instâncias de espontaneidade

Corre, menina longa
de pernas loucas
pra não perder a mãe
o parto
o renascimento
Corre, que teu instante
é esse mesmo
e se ninguém enxerga
abre os olhos tu,
que te podes ver por dentro
Abre para dentro estes olhos longos
não os olhos de periferia
Não te excluas de ti mesma
Já basta o que te fazem
burocratas e pseudovidentes
Essa lua estará no céu
daqui a cem anos toda azul como hoje?
Haverá mulheres e ritual de sabah?
Tu bailas com o esquizofrênico
Tu beijas a face gloriosa
E te encantas com Clarice
fumando e caminhando de um lado para o outro
sob o olhar daquele menino
O que podes fazer hoje é caminhar por cima de todo lixo que te jogaram em cima

Corre, menina!
Corrida, menina-te
que a vida é louca
os cabelos são longos
a lua é azul
e a censura também é esquizofrênica
expressa pra mim esse grito
essa angústia
essa mentira
que hoje eu estou com sono
quero dormir a vida
quero ninar a taturana
pra virar borboleta
e esperar a metamorfose
correndo nos campos de centeio
nos campos de concentração
e na desconcentração de todos os campos

coloca teus enfeites na cabeça e vai, menina
tua coroa são tuas idéias
reina teu reino
come teu pão
bebe tua saliva
perturba teus pais
porque é chegada a hora
a grande, longa, periférica
esquizofrênica e loira
hora
toda hora é chegada a hora
respeita teu tempo e corre
agora então
porque é certo
que estás mais perto de ti
que qualquer outro
e isso é um privilégio

poema que escrevi no ponto e no ônibus há cerca de dez anos

Um comentário:

fads disse...

e viva o papel
sem ele coisas assim se perdem

e viva essa coisa que a gente tem de guardar papel e um dia afinal remexer a papelada

menina louca, longa, fundamental.