Colher carícias como quem furta flores no jardim alheio
quarta-feira
Mudança de estado
sábado
sexta-feira
Não perca sua imagem
No espelho me olha ainda a menina que se lembrava de tudo
No espelho me olha ainda a velha que esqueceu pouco a pouco quem era sua mãe
Atrás do espelho me olha ainda o homem que não me viu crescer
Atrás de mim, no espelho, vejo ainda o homem que trocou cigarros por balas
Frente ao espelho estou com cada cabelo branco e cada ruga
Frente ao espelho estou na minha beleza e na minha grandeza
Frente ao espelho, cada fragilidade submersa
Toco a superfície
As imagens confusas. Não sou mais eu
Preciso enfiar a mão para me tirar lá de dentro
Preciso não me afogar numa confusão de seres
Preciso não me perder de vista
Pois uma mestra me disse:
´´Não perca sua imagem´´
De todas as formas ela estava sozinha
De todas as formas ela queria estar sozinha
Sua força era areia levada pelo vento, banhada pelos mares
na ampulheta do mundo
De todas as formas, ela sempre esteve sozinha
De todas as formas ela nunca esteve sozinha
Ao seu lado andavam mães e mulheres em cujo ventre nunca
floresceu raiz
Mulheres cujo ventre foi violado por bichos
Ao seu lado estavam homens cujo corpo fora violado por
ferros
Ao seu lado estavam crianças que não tiveram a chance de
voltar para a escola
Ao seu lado estavam crianças que não tiveram a chance de ser
crianças
cujo corpo fora violado tantas vezes que só lhes restava desespero
Ao seu lado estavam guerreiros cujo sangue evaporara em
nuvens densas
De todas as formas, por todas as eras desde tempos sem
início, ela tinha a seu lado uma fonte de beber árvores que dançaram com ela em todo momento
de desespero e alegria
Ela não tinha medo de morrer sozinha conhecia desde tempos
sem início este encontro
conhecia desde tempo sem início um vale onde lavar os pés
encharcados de memória
Um corpo pouco são mas seu
Um corpo denso demais para ser replicado
Um corpo etéreo demais para ser falso
Desde tempos sem início ela estava sozinha juntando fios até
formar cabelos, juntando fios até formar cabeça, juntando fios até tecer
pescoço e serpentear os nomes das
coisas.
Uma tessitura infinda de dioramas-pele rabiscando
mandrágoras inteiras na garganta das galáxias
Ao seu lado caminhava uma nação sozinha
Sozinha, uma nação de pé para assistir atenta cada movimento
estrondoso e litúrgico de um pequeno germe
Uma nação sozinha imensa
Uma ode se ouvia baixinho, mandando fazer, mandando tirar
Gritos acordaram os pensamentos de uma estrela guia e ela
parou congelada e olhou ao redor
O que viu, contou somente a um ente seco que chorou tanto a
ponto de minar água de novo para que outros povos pudessem se banhar.
sexta-feira
Pele da cor da terra
Sangue
Debaixo da pele preta
Sangue
Em cima da pele branca
Suor
Por sobre a pele preta
Suor
Debaixo da pele branca
Ódio
Sobre a pele preta
Sangue
Sobre a pele branca
Joias
Sobre a pele preta
Mais sangue
Sobre as mãos brancas
Sangue
Debaixo da pele da terra
Corpos
segunda-feira
Hoje lembrei que foi você que me ensinou a ser preta.
Me falava com ternura do vô, seu pai preto, com tanta saudade dele, você adoeceu.
Depois sarou na macumba. Um preto velho cuidou de você, Cosme e Damião cuidaram de mim. Daí fiquei kardecista até entrar na universidade. Uma macumba de branco francês à qual sou grata. Sempre serei grata por você ter dito: "Não batiza. Ela escolhe a religião quando crescer". E eu cresci, mãe, mas ainda lembro das tardes rezando o terço com vó, de ler os livros do Chico Xavier, lembro de Omulú dançando e titia comigo no colo, lembro de ver a bisa no retrato com os cabelos pretos, índia que sempre foi, lembro de ouvir o vô chegando em casa e comendo na cozinha depois de morto. Lembro dos espíritos preenchidos de luz que vi em nossa casa de Pirituba.
Mãe, eu fui na igreja de São Benedito agradecer por poder levar o Meu Boizinho de Papel para crianças pobres em Florianópolis. Depois eu fui na catedral agradecer Nossa Senhora Aparecida por minha saúde, pedir pela saúde da família universal, especialmente saúde mental. Pedir que eu possa levar cura e alento à família universal. Ontem eu vi muita gente com fome na rua, vi dor nos olhos do meu amigo e nos de uma mulher que não pude ajudar. O que posso fazer é tão pouco.
Mãe, o samsara entrou num redemoinho doido. As pessoas estão adoecendo de tanto trabalhar, de tanto odiar, de tanta sede. Eu vi você saindo desta casa e eu vou também. Preparo minhas raízes aéreas para alcançar a próxima árvore grande e me enramar pela floresta.
Mãe, você me ensinou a ser preta, a ser livre, a cuidar das pessoas, a valorizar a vida e a saúde, a ser justa, honesta, a me defender, você me ensinou tudo, me deu tudo antes de ir. Eu peço perdão pelas minhas palavras duras, peço perdão pela minha falta de paciência e pelo sentimento de raiva que cultivei, peço perdão por não ter sido uma filha melhor, nem tão boa mãe pra você quanto você foi minha. Eu peço perdão por cada vez que minha vó te bateu e peço perdão por ela ter me tirado de você. Agora nós todas somos uma só curadas do desamor, curadas pela luz que emanamos que é maior e mais forte que qualquer escuridão oculta.
Mãe, te agradeço pela sua loucura que me salvou da sanidade doente.
domingo
Ainda não
Eu vi pessoas sem idade ali.
A pedagogia da liberdade voltou a cantar tão alto no meu sangue que pedi pra todo mundo se ouvir e no eco do outro soou um estrondo que era um coro lírico dizendo: ainda não acabou!
Tem espelhos na sua cicatriz
Tem espelhos planos em alguma parte da alma dela
Chega perto e me mostra uma ferida que não fechou
A ferida dela é dura como rocha
Cicatrizou ainda quente e seu aspecto é de um líquido frio
Mas ao ser tocada, a ferida é dura
Não se derrama, não se abre de novo
Dura
Concentro minha atenção por um instante nos horizontes que brotam da cabeça da mulher em forma de cabelos
Madeixas-horizontes infinitas pendem nos ombros da mulher
Tem espelhos côncavos em alguma parte da coluna dela
Sua ferida é convexa
E dura
Cicatrizou quente
Seu aspecto é de um machado fluido
A mulher se escora na outra perna e me olha
Parece fazer uma pergunta mas não entendo sua língua
Firmo o olhar para examinar a ferida
E o espelho turva
Bate um vento e os cabelos-horizontes voam para longe.