Páginas

quarta-feira

Meu reino é daquele mundo

Você foi o primeiro homem da minha vida que já começou ausente. Isso não explica nada só o meu complexo de vítima.
Isso aqui não é pra ser um consultório psicanalítico digitado, só quero falar com você. Eu fui uma garota mimada porque minha mãe era a única solteira da escola naquele tempo e daí: coitadinha, eu tinha que receber alguma compensação. Mas eu não me achava mimada não. Eu não ganhava ovo de páscoa, eu tinha muitos brinquedos, mas era filha única e era meio chato brincar sozinha.
Sabe do que eu gostava de brincar? Eu pegava folhas de uns eucaliptos bem grandes que ficavam na frente da casa e fingia que o pinheiro do quintal da minha vó era um castelo. As folhas do eucalipto eram os habitantes do reino. As mais maltratadinhas eram plebeus. As folhas maiores ou mais bonitas eram reis, rainhas, princesas. Claro que em algumas histórias, as folhas maltratadinhas ou pequenas é que eram a rainha ou a princesa.
Hoje fiquei pensando no quanto já fui vaidosa e no quanto ainda sou. É sério. Daí eu estava vendo uns vídeos sobre folguedos populares e quilombos e pensando na força que tem esta história de uma rainha vir pra cá acorrentada num navio e virar escrava. Vendo a humildade daquela gente de quilombo falando e dançando pra pagar promessa, eu vi um rei. Como é que pode um rei ser assim tão humilde, falar tão simples e andar descalço? Tive vergonha de mim e das minhas manias de grandeza. Fiquei pensando na beleza destes reis e rainhas "cativos" e lembrando da frase do Nietzsche: "Só posso acreditar num deus que dance". Inventei que só posso me curvar a um rei que pise descalço no chão batido.
Estou dizendo tudo isso, acho que porque esse negócio de pai, pátria e patrão não foram digeridos direito pela minha saliva. O fato de você não estar por aqui não me permitiu pronunciar a palavra "pai" em ocasiões que não fossem rezando. Daí que isso me deu um baita quiprocó com Deus certa feita. Agora acho que está tudo resolvido. Não estou tentando culpar você pela minha treta com Deus - cada um que resolva a sua! - mas é que sua ausência me fez ignorar o significado da palavra pai. É interessante porque, embora eu nunca tenha tido irmãos (não que eu conheça pessoalmente por enquanto), eu sempre soube o que significa esta palavra. Mas é que irmão a gente chama pelo nome mesmo.
Ultimamente eu tenho experimentado chamar minha mãe pelo nome às vezes. É legal também. Não é falta de respeito nem de afeto. Sempre funciona quando estou irritada com ela. Ela está com a memória gasta e isso gasta minha paciência às vezes. E minha rudeza me faz até gritar com ela, isso sim uma falta de respeito e de tempo.
Acho que virei uma menina imaginosa por culpa sua. Eu ficava pensando como será que era seu rosto, como será que seria quando você chegasse. Como será que ia ser maravilhoso ou terrível quando você um dia voltasse pra casa. Você não voltou até hoje. Acho que não volta mais, né? Tá. Isso não gasta a minha esperança. Aérea esperança, pois não? Eu ando aprendendo que é mais fácil quando a gente se concentra naquilo que dá e naquilo que pode. Lição simples que o Yoga me ensinou. Porque o Yoga tem um montão de posturas físicas e mentais. Quanto mais a gente se concentra nas posturas físicas e mentais que a gente não alcança, menos a gente alcança. Quando mais a gente se concentra nas posturas físicas e mentais que a gente faz com facilidade, mais a gente avança, vence os medos, os limites de dentro e de fora. Dito e feito.
Sabe, pai... daí hoje também fiquei pensando na minha tia. Entendi por onde é que tenho que me lembrar dela. Acho que é porque revi algumas fotografias e revi aqueles olhos que ela tinha às vezes. Eram de uma cor, sei lá qual. Uma beleza mesmo.
Então é isso. Fico contente que esta carta tenha sido mais leve de escrever que aquela na praia. Disse minha amiga Fádhia uma vez que eu tenho isso, meio que um dom de ir deixando as coisas mais leves. Capaz. Tenho voltado a sonhar mesmo que ando voando.
Sabe que enquanto estava escrevendo isso aqui, me deu uma saudade enorme daqueles eucaliptos e daquele pinheiro, meu povo e meu reino. Tenho mais saudade de árvore que de gente.



Nenhum comentário: