Sinfonia número dois. Acorde perdido numa pilha de diários femininos.

Eu sou a mulher de papel e escrevo meu destino com minha pena. Minha pena versa, reversa, mas não conversa porque tenho coceira em lugares impróprios quando estou no meio de gente de carne e osso, mesmo gente vegetariana me coça aqui e ali. A gente passa, eu sou.
Fibra e tinta. Pena e trança vegetal, num engenho maravilhoso que desemboca no meu corpo papel em branco, em desenho e em palavra. Se me queimarem, gesto. Se me rasgarem, gozo. Se me pintarem, mudo. Se me dobrarem, vinco. Se me molharem, absorvo.
Nasci, pari e morri incontáveis vezes fora do tempo dos homens, esse tempo dos relógios e das religiões. Respiro nas ervas das bruxas, danço com as rainhas negras, as brancas e as santas. Canto na voz das concubinas, as amantes e as putas e as mães. Como minha placenta de papel feito bicho. Visto e dispo, fora do estado de disputa e de palavra da geografia dos homens. Sem honra, sem moral, sem estética e sem estática. Sou a frágil e eterna figura de papel, com cheiro e textura sem notícia.
Sou a paisagem imóvel e ignorante. Sou o contorno da letra feito a carvão. Meu grito é extinto como a seiva que correu na folha. Minha fotossíntese é meu alfabeto extinto. Sou a mulher de papel e cheguei agora aqui sem arquitetura, sem nau, sem noivo, nem nada, só eu e meu corpo dentro desta anunciação, só para lhe dizer que estou viva.
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