Era uma vez um menino
que esquecia agasalhos
Não era por querer
Não era de propósito
Cada agasalho esquecido
Ia virando um depósito
um pedaço de calor
no meio de um mundo frio
Um agasalho branco
caiu no chão numa praia
Foi juntando areia em cima
até virar uma duna
Ali as pessoas brincavam
escorregando por ela
viravam criança de novo
Assim se aqueciam
embora o frio do mundo.
E na intempérie a duna
barrava os ventos fortes
E as casas dos pescadores
estavam então protegidas
do frio, da maré, do medo
Um agasalho amarelo
enroscou na raiz de uma planta
que cresceu e virou árvore
depois flor e depois fruto
depois pau, folha e fogueira
que alimentou e aqueceu
três nações daquele mundo
e mais cinco de outro mundo
que depois foi descoberto.
Virou canoa num rio
atravessado por gentes
de dois ou três continentes
Um agasalho preto
Caiu dentro de uma cuia
do parente de um tapuia
que levou a cumbuca estranha
aos parentes da sua aldeia
Abriu e caiu dormindo
pois dali saltou a noite
E naquela paragem erma
onde só existia dia
agora a noite se estendia
como um lençol sobre os índios
dando descanso a cunhãs, curumins
cunhatãs e toda sorte de seres
que habitam a noite da floresta
de novo viram-se livres
Um agasalho verde
foi achado por um velho
numa estação de metrô
numa cidade estrangeira
O velho fez um remendo
e acrescentou dois bolsos
um para os seus óculos
outro para seu lenço
que há anos não usava
enfeitando a lapela
Sempre que usava o agasalho
o velho homem cantava
tanto que esquecia
seus óculos dentro do bolso
tanto que esquecia
que as flores que trazia
eram para um túmulo no cemitério
E o velho entregava as flores
para estranhos na rua
e sorria seu sorriso verdadeiro e sem remendo.
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