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sexta-feira

Mãe, amanheceu bonito aqui no Cerrado onde escolhi viver. Anteontem estive perto do mar e vi que ele continua sendo uma imensidão forte. O mesmo mar que visitei com você, tia Lilia e tia Mazé há trinta e seis anos, o mesmo mar diante do qual me reconciliei com meu pai há oito anos. Ele está lá e me falou sobre ser livre, ser forte e ser grande e todas essas coisas que também são parte da minha natureza. Brinquei, brindei com água limpa, reverenciei as águas que fluem dentro, deixei o sal limpar e sair. Vi fogo e terra dentro dos olhos de pessoas que construíram casas de madeira em cima do morro, vi o fluxo daquele que abre e fecha caminhos e se embriaga com vinho de palma, senti a pele estalar com calor e frio, escutei a terra e a pedra da montanha e havia mulheres estudando gente que não crê em Deus. Vi um homem cozinhando para crianças e quando disse a ele: "É maravilhoso seu trabalho." ele respondeu: "É porque não é meu trabalho, é minha vida."
E um monge nos recebeu, abriu as portas e falou sobre compaixão. E houve samba e yoga, chorinho e côco sambado com mulheres. Houve pai solteiro criando a filha menina e revoada de tucanos. A mente e o mestre presentes e pressenti aquilo que já vivi em tempos sem distância do agora.
Mãe, as pessoas cantaram parabéns para o ex-presidente preso e dançaram a força das mulheres na praça e choveu pra lavar tudo, choveu granizo até. Encontrei meu amigo que vai se casar, minha amiga que cria filhas imensas na sua grandeza humana, minha amiga que comprou uma blusa para sua mãe (difícil de achar porque a las mujeres no se permite ser gordita) e minha amiga irmanada na busca por seu caminho solo, seu caminho que escreve, seu caminho que oferece mais do que recebe. Os caminhos se mostram, mãe. A alegria de estar junto era tanta que era o mesmo que ter você e minha família comigo em cada vez. Era o mesmo que encontrar vovó de novo. Eu levei todas as velhas comigo. A avó das avós vai se desenhando no meu coração em forma de um amor tão profundo quanto aquele que enterrei junto com seu corpo físico. Enterrei para que floresça, enterrei para que no dia dos mortos de amanhã, sua vida esteja pulsando no meu sangue junto com a menina e a velha que você foi, mãe. E que a profunda paciência e resignação ativa que emoldurou seu ser, possa ser em mim sua herança valiosa.

Um comentário:

Marta disse...

A mama que se faz presente em brisa e encanto. Ela mora pra sempre em você, nos seios, nos traços e braços, no absoluto da sua liberdade.
Que graça poder conversar através do além, com essa que te acompanha, tatuada na sua figura.
Laço bonito de fita e amor.