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segunda-feira

Fernando, Manoel e Marcos

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava lá no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então, se a criança muda a função do verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia, que é voz de poeta, que é voz de fazer
nascimentos -
O verbo tem que pegar delírio.

(Manoel de Barros, O livro das ignorãças. 10a edição 2001. ed Record. P.15)
Discorrendo acerca das suas classificações de arte, o escritor nordestino Ariano Suassuna, diz serem possíveis três modalidades:
o Artes Espaciais - Aquelas atividades que apresentam como resultado, elementos justapostos num espaço determinado. São exemplos, a escultura e a arquitetura.
o Artes Temporais - Os elementos que a compõe sucedem-se no tempo. Exemplos: música e literatura.
o Artes de Síntese - Fusão das anteriores obedecendo a uma narrativa. Nestas estão inclusas o balé, a ópera, o teatro e o cinema.
Suassuna ainda segue: dentro desse último grupo, a narrativa em cada um, expressa-se a seu modo. No balé quem narra a história são os movimentos do corpo, na ópera, o narrador é o canto, no teatro a fala e no cinema a imagens em movimento (SUASSUNA, 2000).
Poder-se-ia suspeitar dessa colocação sobre o cinema. Sim, as imagens e a história avançam no tempo, mas que espaço é esse ao qual ele faz referência? Que profundidade é essa que a tela plana ganha na nossa imaginação? O espaço, por vezes, é uma profundidade imaginada. Se há poesia, mesmo um plano bidimensional pode ganhar tamanhos e perspectivas mil.
Manoel de Barros, poeta achegado em despropósitos, afirma sem desnecessidades que o verbo “tem que pegar delírio” (2001, p.15). O verbo é a primeira arte, é um pedacinho daquilo que vem a compor artes de síntese com o cinema. O cinema pega delírio nos olhos do espectador e assim fazendo, toma emprestadas desses olhos texturas, riquezas de cores, proporções: os olhos escutam o filme mudo e tingem com lápis de cor o preto e branco.
O cinema também precisa estar um pouco emprenhado de desvario para ganhar volumes, atravessar o globo dos olhos e entrincheirar-se na mente com “desimagens” entretecendo consciente e inconsciente coletivos.
A linguagem poética e criativa tem uma universalidade latente. Por certo, crianças e esquizofrênicos podem tomar caminho mais facilmente por essa via, pois são menos presos a quaisquer convenções. Conforme Luiz Carlos Mello:
"Certamente a criatividade permanece intocada na condição dita esquizofrênica. Segundo pesquisa inglesa recente, o homem fala cerca de 10 mil línguas diferentes. Mas o substrato mais profundo do homem é universal, e sua linguagem se expressa através das imagens do inconsciente, comuns a todos nós.Nas vivências esquizofrênicas, essas imagens invadem a esfera da consciência com uma força avassaladora e aproximam-se de forma desordenada das fontes do processo criativo. Daí a importância das atividades expressivas no tratamento, o que também poderá revelar, através de extraordinárias criações, as riquezas da psique que estão voltadas para longe de nós."
Foi observado por estudiosos que, nas vivências esquizofrênicas, à medida que a dimensão verbal some, a imagética emerge. O mundo dessas pessoas é povoado de imagens que pegaram delírio e beberam na fonte dos medos, anseios e vertigens comuns a toda humanidade, por isso, podem nos falar muito mais de perto. Mário Pedrosa caracterizou esse tipo de obra como “Arte Virgem” ou seja, uma arte despojada de convenções acadêmicas estabelecidas, ou de quaisquer rotinas da visão naturalista ou fotográfica, pois que representar imageticamente o que está dentro é muito diferente de representar o que está fora.
O cinema de animação, numa rota pelo avesso, diferente de outros tipos de cinema caracterizados essencialmente pela duplicação do visível, é uma duplicação do invisível, portanto uma arte virgem de síntese, segundo as classificações apresentadas.
Introdução da minha monografia "Fernando na Ponta da Estrela", sobre o filme de Marcos Magalhães e Fernando Diniz "Estrela de Cinco Pontas" -2004

Um comentário:

marcosmag disse...

Daniela, recebi a cópia da monografia que vc deixou no Anima Mundi em SP... Obrigado! Adorei ler o seu texto.
Marcos Magalhaes - animando@gmail.com