Por duas vezes não encontrei, mas aqui... Aqui eu sempre passo de ônibus e nunca entrei. Parece aconchegante. Pilhas e pilhas até o teto, mas cheira a ventilado. Ele levanta os olhos do livro e me vê primeiro. Eu, uma adolescente morna, cheia de espinhas na cara, algum chão sob os pés e romances na cabeça. Imediatamente fiz cara de inteligente, pisei mais leve e ergui a cabeça tanto quanto podia - sempre gostei de parecer alta, meu desejo de antes era ser a última da fila na escola, agora era não ter mais espinhas. - Vi que minha pose não adiantava nada, estas pessoas mais velhas que de uma olhada já sabem tudo de você, ele me lia como lia há pouco o livro. Não lembro se fui eu ou ele quem falou primeiro. Coisa de poucas palavras...o jeito dele me olhar depois que eu disse o que queria parecia cinema:
_ Estou procurando uma Clarice Lispector.
_Qual?
Eu respondo. Há um silêncio de segundos.
_Aqui embaixo eu sei que não tem. Vou olhar lá em cima. Fique à vontade.
Só então é que percebo que atrás de mim há uma escada que leva a uma espécie de sótão. Por certo ali deve haver mais pilhas e pilhas de livros e talvez não seja tão ventilado.
Eu espero. No meio da cidade imensa, zoneada, barulhenta, apesar das portas escancaradas, ali não faz barulho algum, parece filme. Eu vejo o ônibus passar fora e fico olhando lá de dentro entrincheirada entre romances, prosa e verso, pra ver se naquele ônibus tinha alguém que também reparava na livraria. Todos distraídos. Psicologia, auto-ajuda, cinema, filosofias, romances, prosas, versos... Ele volta com a Clarice nas mãos:
_Este?
_Isso. Que bom! Já tinha procurado em duas livrarias e nada.
_... É pra presente, né?
_É... mas não precisa embrulhar.
Saio feliz. “Ler com Prazer”. Era um bom nome de livraria e um lugar que parecia cinema. Foi um presente caprichado. Fiz anotações no livro inteiro nas partes que eu queria ressaltar para meu namorado. Meu primeiro namorado, a Clarice falaria com ele por mim.
Nunca mais entrei naquela livraria. Era no centro e eu passava sempre de ônibus olhando, pensando em ir conversar de novo com aquele homem que me leu. Mas o tempo passa mais rápido quando a gente vai deixando de ter espinhas. Um dia, tudo fechado, o que se repetiu por vários dias até que venderam o prédio para uma agência de viagens. Isso me entristeceu um pouco.
Fui embora da cidade barulhenta. Fui de ônibus, eu, quase uma mulher, pés tortos e alguns filmes na cabeça.
Algumas vezes encontrei por aí meu primeiro namorado e nunca contei nada da livraria, nem perguntei mais da Clarice. Um dia nos encontramos, quase formados, cheios de planos e até problemas na cabeça. Nada mais de romance nem de filme, mas a paisagem muda num repente:
- Eu li aquele livro que você me deu.
Tenho que franzir a testa, não me lembro.
_Quando?
_Você me deu faz um tempão, mas eu li agora em setembro.
Penso no homem da livraria, nas mulheres que ainda serei, no chão que me passou sob os pés tortos, romances, filmes, prosas e versos. Nós rimos.
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