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segunda-feira

De como carregar paredes

Tenho uma amiga que nunca ganhou um rio ou um horizonte. Talvez, por isso, por estranho que seja, ela prefere as paredes.
Quando eu era pequena me dava de presente uma e outra nuvem. Deitava-me no chão, certa de que ninguém adivinharia nunca que aquela era a minha nuvem e gastava longos períodos a olhá-la, até que ela se desmanchasse ou deixasse de ser minha.
Eu gostava também das folhas de eucalipto. No bairro onde eu morava, havia eucaliptos enormes, cujas folhas eu transformava em princesas e rainhas e crianças como eu. Inventava histórias que aconteciam nos castelos que eram as árvores. Às vezes acontecia de uma folha pequenina estar seca e eu não sabia bem se deveria representar uma criança ou uma pessoa velha e baixinha. Mas as folhas verdes e viçosas sempre representavam moças, mulheres poderosas, reis. Gastava horas nesse brinquedo, que sempre tinha começo, meio e um final feliz ou com moral da história, como nas coisas que minha vó me contava.
Lembrei ontem da sensação que eu tinha quando brincava de quente ou frio, com uma menina chamada Cristiane. A gente saía da sala onde alguém escondia um objeto que depois saíamos procurando. Dava pra brincar competindo ou sem competir. Pois me lembrei da sensação de estar sozinha fora da casa à noite, esperando Cristiane esconder alguma coisa lá dentro. A casa dela não tinha muros num dos lados. O bairro era pobre e as ruas de chão de terra vermelha e dura. Acho que a primeira vez que brinquei de quente e frio na vida foi com a Cristiane. Às vezes a gente não sabia o que estava procurando e devia se orientar apenas pelo “quente” e “frio” do comando. A sensação de não saber o que se está procurando, numa casa estranha, à noite, o medo de não achar...foi disso que me lembrei ontem.
Tenho uma outra amiga que não guarda nenhuma lembrança precisa de sua infância. Ela me disse que não se lembra do que brincava. Achei isso impensável.
Eu tive uma amiga muito pobre que brincava comigo de casinha e escola. Eu tinha pena porque ela morava num cômodo só, com os irmãos, a mãe e o pai. Dormiam todos na mesma cama. A mãe dela não falava direito porque tinha tido um derrame, mas era jovem e tinha um sotaque nordestino carregado. Na escola tiravam sarro do jeito fanho (“fonhé”, como dizia minha vó) que ela pronunciava o nome da filha: Joseilda. Eu ficava brava com quem tirava sarro porque gostava muito dela. Às vezes ela sentia fome, mas não dizia nada e nem sempre podia comer lá em casa, porque se a mãe dela soubesse, batia nela com um cabo de vassoura. Então minha vó dava comida escondida. Tinha oito anos como eu, mas fazia pequenos serviços domésticos aqui e ali. Era branca como eu, mas tinha o cabelo assanhado e amarelinho. Quando a gente brincava de casinha, eu pegava os melhores brinquedos (pois eram todos meus) e deixava a casinha dela bem pobrinha. Ela parecia não se importar, gostava muito de mim também. Foi ela quem me ensinou o primeiro palavrão que aprendi. Chegou e perguntou:
_ Sabe o que é cu?
_ Não, porquê?
_ Porque é um palavrão muito feio.
_Mas quer dizer o quê?
Ela ficou com vergonha de me dizer e fiquei atazanando ela:
_ Se você não disser o que é, vou sair falando bem alto. – e saí mesmo, ela quase morreu de vergonha. Tínhamos uns nove anos.
Um moço disse uma coisa bonita sobre a casa da minha amiga, aquela que prefere as paredes, essa já é moça também, que nem as folhas viçosas do eucalipto. Ele disse que as paredes da casa dela parecem folhas de um caderno de criança. Então me pus a imaginar como eram os cadernos da minha amiga. Ela me disse uma vez que se pudesse, carregaria as paredes que pinta junto consigo. Acho que ela entende que a parede é sua, como a nuvem era minha na minha brincadeira.
Eu lambia tijolo quando era pequena. Achava fascinante o cheiro do barro quando molhado e o gosto tão parecido com o cheiro. Às vezes lambia, só pra ficar cheirando o barro até secar. Eu também subia e pulava muros. Na primeira vez que tive um quarto, escrevi uma frase do Renato Russo e uma do Hermann Hesse na parede e tinha até um pouco de vergonha depois quando as pessoas viam. E se bem me lembro, minha relação com paredes foi essa.
A casa onde moro hoje tem algumas paredes pintadas em cores bem gritantes. Eu achava isso muito refinado e bonito. Agora acostumei. Minha amiga que morava antes aqui é que pintou. Ela já é até mãe, mas sempre a achei tão refinada que nunca imaginava como teria sido seu rosto quando criança, assim como não consigo imaginar como era o caderno da minha outra amiga. Lembro ainda da primeira vez que vi uma foto da minha amiga refinada, toda descabeladinha, de chinelo, numa rua de terra, numa bicicletinha com o pai, o irmão. Vai ver que eu achava ter pai, irmão e bicicletinha, um refinamento só. Vai ver que é.
Mas daí eu gostava muito também da minha amiga das paredes e ela me pedia ajuda porque não podia carregar as paredes consigo e dava uma coisa dentro, porque parede é tão pesada, mesmo quando parece página de caderno de criança!
Quando passou um fim de semana na minha casa, ela deixou dois desenhos nas paredes, pequeninos e violetas. Um numa parede branca e um numa parede amarela. Fiquei brava porque tinha pedido pra ela não desenhar. Depois fiquei pensando que os desenhos serviam pra eu me lembrar dela quando ela não estivesse ali. E continuei brava porque quero me lembrar dela quando quiser e não quando olhar pra parede da minha casa.
Depois pensei ainda mais, pensei sobre a necessidade de vencer a morte de algum jeito e deste jeito: pintando paredes. Pensei nos homens das cavernas e num moço chamado Vitché que escreve seu nome nos muros. Pensei na minha mãe que gosta tanto de janelas fechadas e escuro e que a cada dia parece mais com uma mulher das cavernas e uma criança. Pensei nos desenhos e garatujas da minha mãe e da minha amiga. Pensei nos moleques que escalam muros, paredes só pra escrever o nome deles lá no alto. Pensei numa peça de teatro em que uma princesinha quer ganhar a lua. Pensei que ganhar um rio, uma nuvem ou um prato de comida escondido, tudo tem seu refinamento. Pensei no Manoel de Barros e no Carlos Gauche e daí soube que eu posso carregar comigo muitas coisas... a lua, a fome da minha amiga, o cheiro do barro. Acho que é isso que a gente leva para além da morte. As paredes, os nomes, as imagens... isso fica tudo aqui.
Quando eu morrer não quero laje nem lápide, só o barro cheiroso e, se der, umas folhas de eucalipto.

2 comentários:

Ana Teixeira disse...

Mas que delícia ler isso tudo! Eu, pessoa que desenha em paredes também...
Vc precisa vir aqui ver o menino vermelho que está dormindo na minha sala, agora mais solitária e vazia.
Vem visitar minha solidão?

um beijo, menina querida

Daniela S. disse...

as paredes, os tijolos, os meninos, os desenhos...