Guardo cada história num lugar do corpo. Na cabeça mesmo guardo pouca coisa. Não há muito o que guardar.A história da charamela eu guardei perto da nuca, por isso esqueci boa parte dela. A história da moura torta eu guardei abaixo da clavícula direita, um pouco acima do peito, antes do ombro.Também não entendo nada de anatomia. Sei que deveria. Faz tempo que não me dedico a estudar nada, embora não tenha deixado de aprender muito.De cinco anos pra cá tenho me dedicado mais a ouvir e observar. Eu tenho ouvido bom, mas pudores no resto do corpo. Não consegui aprender a dançar, por exemplo. Nem nadar.Não tenho, portanto, onde guardar várias histórias. No baixo ventre acumulei algumas que não chegaram a germinar, mas me alimentaram por algum tempo.Tenho uns ossos no quadril que estão sem funcionar direito porque é ali que guardo meu esquecimento voluntário de algumas histórias que não são bonitas. Bem acima do umbigo também acumulei algumas sem final feliz.No pescoço está boa parte da minha infância e o começo da adolescência.
No calcanhar estão dois namoros que não deram certo. Talvez tenha até mais algum que não assumo.Nos ombros, algumas histórias de família. Histórias felizes do lado esquerdo e as outras do lado direito.E tem uma história secreta de um namorado da minha mãe sem final, que está em um dos meus joelhos, não sei qual.Eu comecei bem nesse negócio de corpo, mas estive muito doente quando era pequena. Superei várias coisas, mas elas voltam e me atormentam. Há um tempo, por exemplo, passei quase um ano com medo de dar cambalhota. Foi por causa de um dia, quando estava toda feliz acabando de descobrir que sabia dar cambalhotas e treinando,mas minha avó chegou e disse que essas brincadeiras eram perigosas e eu poderia quebrar o pescoço e morrer. Eu ainda dei algumas cambalhotas depois disso e estava quase aprendendo aquelas que a gente dá pra trás, mas fiquei de repente pensando na morte e no tamanho do meu caixão. Foi nesse mesmo dia que eu chorei de saudade da minha mãe. Acho que tinha 8 anos.
Daí fui largando meu corpo com todas as histórias. Até os 11 anos, eu não sabia que era no corpo e não na mente que a memória fica, mas me lembrava de tudo (por isso me impressionou tanto aquele conto de Borges chamado "Funes, o memorioso". Eu era como ele até os 11 anos, com a diferença de que não sabia nada do tempo nem das horas. O que Borges não entendeu é que a memória não tem nenhuma relação com o tempo do relógio. Depois, com 20 anos, até tentei estudar o tempo e o cinema, sem sucesso.Lembrava com detalhes. As palavras, lembrava-as exatas e me lembro do dia em que decidi que já não havia onde guardar memórias e que teria que esquecer. Eu estava perto do escadão que dá na casa da minha avó lá em Perus, voltava da feira com ela. Me dei conta de que me lembrava de tudo, com detalhes. Detalhes que espantavam minha avó e os outros. Eu tinha decidido me lembrar desde que vira minha mãe chorando. Mas isso foi quando eu tinha 3 anos de idade. Eu tinha decidido não esquecer, para saber-me consciente. Mas aos 11 anos, não havia onde guardar tanto detalhe e comecei a esquecer. Aos 21 anos conheci Ulisses que me ensinou isso de que os pensamentos da gente não se dão apenas na cabeça. Não me lembro das suas exatas palavras, só uma frase: "Eu posso pensar com meu joelho." Nesse dia ele estava hospedado em minha casa junto com o rapaz por quem eu era apaixonada.Lembro dos olhos dele quando voltei pra casa, depois de ter dormido em outra casa, com outro cara.E lembro dos olhos do Ulisses quando voltou a pé pra me ver no fim da festa, quando não havia mais ninguém, só um engenheiro mala que queria me comer .Fiquei com o engenheiro porque ainda não tinha deixado de estar apaixonada pelo cara que morava com o Ulisses. Especificamente esta história acabei guardando na lateral do joelho direito. Acho que a lateral interna.
Mas teve também as histórias com meninas. A Paula era legal e dentuça como eu, mas eu gostava era da irmã mais nova dela. Gostava assim, de querer ser igual. Elas me ensinaram a não ter medo de andar de bicicleta. Sem medo a gente vai.Hoje esqueci, mas sabia.Depois que decidi esquecer, tudo deixou de ser organizado no meu corpo e na minha memória.Daí lembro meu amigo poeta me dizendo algo como: Não acredito nessas historinhas de que quando cê tá bêbado, esquece as merda que faz.- E lembro dele, movido à vaidade de ser poeta, me ajudando, me desajudando. Entendi que a vaidade faz a gente confundir e esquecer coisas importantes. Também sou orgulhosa e vaidosa. Mas essa história eu guardo em algum lugar dos membros inferiores, não sei precisar qual.Tem um menino punk, aspirante a Sid que tá mais pra Johnny Rotten. Ele sabia mais sobre mim que eu e foi no dia que a gente conversou que me dei conta de que minha memória pode estar com os outros. E ele sabia a versão dos outros sobre a minha história. Daí me liguei que não adiantava porra nenhuma lembrar, se a gente nunca sabia a versão dos outros. Sim, a memória é uma ilha de edição.
2 comentários:
Li não sei aonde que a pele tem uma memória incrível. Acho que foi algum artigo científico desses, disse até que ela sente medo. Eu sei que a minha pele tem apego histórico com tudo, qualquer arranhãozinho fica por anos, tem dia que eu fico olhando pra minhas pernas e tentando advinhar a história de cada mancha. São tantas.
Interessante isso de apego histórico da pele.
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