Em teatro o termo técnico “subtexto”, pretende designar aquilo que o texto não diz com palavras. O texto de teatro é só um amontoado de linhas escritas até que aconteça a luz, o corpo, o gesto, o público, a voz...
Minha experiência com teatro data dos 14 anos, quando freqüentava a Federação Espírita do Estado de São Paulo que oferecia, trabalhos de evangelização aos finais de semana para turmas separadas por idade como classes de uma escola – minha turma: Sementes do Amor – e também grupos de atividades artísticas e lúdicas, a saber: Coral, Artes (trabalho com artes plásticas) e Jogos (jogos cooperativos e brincadeiras). O trabalho era muito bem estruturado, de modo que as turmas maiores, a partir de 13 anos, freqüentavam estes grupos e ofereciam as atividades para as turmas menores. Eu escolhi participar do grupo de Jogos, pois até então, era uma garota retraída e espinhenta com muitas expectativas e medos. Esperava que participar deste grupo me subtraísse um pouco da timidez enorme que chegava a me atrapalhar na escola. Além de estudar sobre jogos, fazer dinâmicas de grupo e aprender a difícil arte de trabalhar coletivamente, estudávamos textos a respeito de desenvolvimento humano, psicologia, educação e a doutrina espírita. Realmente a primeira vez que entrei numa sala de crianças de 5 ou 6 anos para conduzir um jogo (sempre íamos em 2 ou 3 pessoas) minhas pernas bambearam bastante, mas sobrevivi. As avaliações constantes e a convivência nesse grupo com pessoas de tantas idades e experiências profissionais e de vida diversas (havia psicólogos, técnicos, micro-empresários, universitários e nós, adolescentes cheios de hormônios!) enriqueceu-me muito como pessoa e me fez acreditar que planejamento, organização, responsabilidade e união, eram capazes de transformações maravilhosas. De fato, eu me transformava a cada dia, física e emocionalmente.
Pelo meio do ano, começava o trabalho com teatro, com a finalidade de desenvolver uma apresentação final para todas as turmas de estudantes do evangelho, seus pais, parentes, os evangelizadores e quem mais freqüentasse a casa. Resolvi encarar o desafio. E que desafio! Uma pena não me lembrar mais o texto mas, parece-me, era a história do nascimento de Jesus sob a ótica de um personagem não convencional. Havia três narradores na história e eu seria uma delas. Como eu disse aceitei o desafio o que implicava em não apenas decorar o texto, mas falar muito alto (a apresentação era no enorme Salão Bezerra de Menezes) e principalmente vencer minhas travas corporais. Acabei sendo uma das narradoras principais pois demonstrei facilidade para decorar o texto, mas todas as travas ainda estavam lá. A exposição ao público, era mostrar a todos minha magreza, minhas espinhas, minha coluna sem postura e minha voz que eu achava feia. Ao mesmo tempo, era tudo isso que eu queria superar no palco, meu próprio corpo. Eu não queria que as pessoas me vissem, mas a outra pessoa que eu poderia ser no palco. Foi assustador e mágico, como costuma ser tudo em teatro. A montagem ficou boa e recebemos convite até para duas apresentações em outra cidade, Botucatu. Uma para trabalhadores rurais (gente muito simples e bela) e outra num teatro de verdade no centro da cidade. Duas experiências inesquecíveis.
E foi assim que debutei antes dos 15 anos. Depois vieram os papéis de Bicho- Preguiça e Bobo da Corte, este último rendeu-me uma experiência terrível de medo e “branco” em cena e a certeza de que com os erros aprende-se muito.
Desse modo, quando fui fazer o curso de Magistério era inspirada nessa idéia de que poderia ensinar às pessoas e aprender com elas. Muito embora gostasse tanto das artes – eu desenhava, gostava de teatro e sonhava em fazer cinema – era preciso sobreviver e estudar algum curso técnico para buscar oportunidade de emprego e ajudar minha mãe.
Foi no Magistério minha segunda experiência com teatro. Na escola Derville Allegretti, organizavam-se apresentações teatrais para todas as turmas a cada dia 8 de março. Cada turma do magistério (eram 4, uma de cada ano do curso) escrevia uma peça e apresentava para as outras turmas e mais alguns alunos que escapavam dos outros cursos como Prótese Dentária ou Edificações e iam comemorar o Dia Internacional da Mulher no auditório da escola.
Além disso, como muitos prestavam vestibular depois dos cursos, organizavam-se montagens das obras de leitura obrigatória para o fim do ano. Foi assim que montamos Vestido de Noiva, apresentada no teatro Alfredo Mesquita, ao lado da escola, comigo na iluminação, auxiliada pelo moço que trabalhava no teatro. Foi uma experiência bem diferente nesse grupo, pois tinha mais cara de profissional, o diretor era de fora, conhecido de alguém. Gostei de operar a mesa de luz.
Praticamente o mesmo grupo permaneceu no ano seguinte, quando montamos Dom Casmurro. Novamente fiquei com a parte técnica: divulgação apenas, se bem me lembro.
No último ano de curso, surgiram dois jovens e belos diretores, amigos da Denise (Prótese, 4º. ano). Montaram o grupo a partir de uma seleção com alunos da escola inteira. Para a seleção, devíamos apresentar um trecho de Shakespeare (que sei de cor ainda hoje), Mackbet. O grupo ficou bem seleto, incluindo inclusive alunos do noturno e um menino tímido com problemas de dicção que cresceu bastante dentro do grupo. Começamos a ensaiar aos finais de semana, uma colagem de textos de Luiz Fernando Veríssimo, a partir do seu livro Histórias da Vida Privada. A montagem ficou se chamando “Uma surpresa para Daphne” (nome de um dos contos do livro) e, em um ou dois meses tínhamos tudo pronto, inclusive figurinos. Meu texto junto com o de outras meninas, era uma seqüência que falava de modo engraçado sobre sexo. Apresentaríamos também no Alfredo Mesquita e eu estaria finalmente no foco das luzes e não mais por trás delas. A apresentação nunca aconteceu pois uma pessoa da escola, não reconheceu a legitimidade do grupo, uma vez que não havia nenhum professor acompanhando. Foi bem frustrante, mas valeu enquanto exercício.
Depois disso, só voltei a tomar contato com teatro na Faculdade. A disciplina de improvisação cênica previa uma apresentação final para todas as turmas de Imagem e Som e montamos uma leitura dramática de “Computa, computador, computa!” de Millôr Fernandes. Meu professor sugeriu que eu largasse a Imagem e Som e fosse para a Unicamp estudar teatro. Cogitei a possibilidade, mas não... meu sonho de estudar cinema! Eu sempre gostei muito de animação. Foi esse mesmo professor, Magno Bucci que disse impossível a criação coletiva em teatro. Durante muito tempo, minhas práticas tentaram provar para mim (e para ele indiretamente) o contrário.
Desde então, Brecht, mamulengos, Poronga, Henfil, teatro na rua, na escola, no auditório, na praça...tantas experiências. E o desafio enorme de dirigir adolescentes e crianças. Dar aulas dessa coisa que ainda tenho tanto por descobrir e que experimento de todos os lados, escrevendo, atuando, ensinando, estudando, dirigindo e digerindo.
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