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domingo

A mulher de papel

Uma mulher sai porta afora. Não tem dinheiro nem roupas, nem grandes ambições. Como é feita de papel teme a chuva, o vento e a tinta. Move-se com graça, quase flutua. Seu rosto é copiado de uma cartilha; seu corpo é colorido com aquarela e seus cabelos são de origami. Os órgãos da página 3 estão rasgados ou rasurados, por isso ela vai sem pressa. Não voltará jamais. Ignora que mulheres de papel são feitas para não ter destino algum. Sorte a sua.
Apud Ópera de Pano, Blues literário escrito por um menino de gelo

A boa educação dita que não devo mencionar certos assuntos. Escatologias, sexo, genocídios e bichos gosmentos seriam portanto proibidos. Sobretudo na hora do almoço. A boa educação dita que não devo ser gregária, devo andar em bando, de preferência constituir família com alguém do sexo oposto a quem devotarei minha vida até que a morte ou uma tragédia de outra sorte nos separe por toda a eternidade e mais uns dias. A etiqueta versa acerca de como devo me vestir e me portar em determinados ambientes. Como devo me dirigir a pessoas que tenham autoridade em assuntos que ignoro, ou que simplesmente tenham uma força maior que a minha.
Daí eu uso o cinto de segurança, utilizo o corrimão, cedo meu lugar, reciclo o lixo, economizo água, vou de bicicleta, sorrio para a foto, escovo os dentes antes de dormir e rezo, oro, medito, tento evitar cigarro e álcool e açúcar em excesso, pratico atividades físicas, mantenho minhas notas acima da média, minhas roupas e unhas limpas, pratico caridade, tenho compaixão por outros seres vivos, não mantenho armas em casa, olho antes de atravessar na faixa de pedestres, procuro ser gentil, pago o que devo, evito o cartão de crédito, mantenho-me conectada às redes sociais sem expor minha vida íntima, procuro ler bastante, desenvolvo minhas habilidades manuais, mantenho meus exames médicos em dia e doo sangue, evito embalagens descartáveis, não jogo lixo no chão, pechincho e economizo dinheiro, procuro ser pontual, como verduras e legumes de maneira equilibrada, respeito idosos e crianças, ofereço flores, evito vícios de toda ordem, uso o fio dental, sento-me no assento que corresponde à minha passagem, uso o condicionador adequado ao meu tipo de cabelo, evito tanto quanto posso a inveja, a gula e a preguiça, sou fiel em meus relacionamentos e cultivo as boas amizades e companhias, levo o guarda- chuva, evito palavras ásperas, confiro o troco, costuro as roupas rotas, evito gordura, tenho zelo e ética no meu trabalho, lavo o banheiro com capricho, desligo o celular em espetáculos públicos, uso filtro solar, não piso na grama, rego as plantas, felicito os aniversariantes e vencedores, esqueço as mágoas, me comovo com as tragédias, sei a hora de falar e de ouvir, durmo e como o suficiente, sou precavida com a luxúria, os jogos de azar e videogame, não entro sem ser convidada, desconfio de alguns jornais e alguns programas de TV, tenho o suficiente para viver, planto o livro, escrevo o filho e faço a árvore, aceito os presentes, tenho alguma sorte, evito o orgulho, o rancor e os transtornos psicossomáticos, contemplo o nascer da lua e o desabrochar das flores, colho os frutos no tempo e não uso defensivos agressivos ao ambiente, tenho fé no milagre das ciências e na lógica das religiões.
Mas tudo que eu queria era ser uma mulher de papel. De um papel delicado desenhado com uma grafia caprichosa, num alfabeto primitivo e morto. Um papel colorido com o qual a criança pobre pudesse fazer seu pipa que acabaria preso no galho mais alto da árvore velha. Daí a minha profissão e incumbência única seria deixar-me dobrar e rasgar e recortar com a tesoura.
Tudo que eu gostaria de ser era a mulher de papel. Então minha obrigação seria virar folha de rascunho e recados. Ir parar dentro de um livro de receitas meio sujo de farinha e manteiga. Deixar-me estar lá esquecida e sem nenhuma importância.
Ser a mulher de papel onde se anota o telefone ou o bilhete que é preciso queimar. O lenço contaminado num hospital. O livro antigo sem capa.
Sem gozo, nem futuro, nem família. Ignorar por completo a solidão e a liberdade.
Por isso, se hoje eu encontrar o gênio da lâmpada, meu único pedido será: quero ser a mulher de papel, nua e vulnerável a qualquer mão, qualquer líquido, qualquer cesto de papeis.

Um comentário:

Unknown disse...

Massa!!!