Páginas

segunda-feira

in dependência

Eu, Daniela Soledade, a persona artística de Daniela da Silva, venho por meio deste escrito, fazer um relato de experiência.
No outono de 2013, morando em São Carlos/SP iniciei um curso no Espaço Satyros em São Paulo/SP. Viajava cerca de 300 km por via terrestre uma vez por semana, sob o mote inicial de aprofundar meus estudos sobre performance, rever minha cidade natal e conviver com pessoas afins. Perto da efeméride do 7 de setembro, suposta data da independência brasileira das garras da vilania portuguesa, nosso orientador do Satyros lançou o desafio de elaborar uma ação coletiva composta de várias ações performáticas individuais no Parque da Independência. Sabendo da minha não possibilidade de estar presente na data, elaborei uma ação individual planejada para acontecer em 7 de setembro de 2014. Escolhi 7 amigos brasileiros - entre 30 e 39 anos - que vivem fora do país, na Noruega, Argentina, Alemanha e Holanda . Através da rede social operante na ocasião, pedi que eles me enviassem imagens ou palavras que remetessem à ideia de independência no intervalo deste 1 ano a fim de realizar uma ação performática usando este material como tema. Uma pessoa na Alemanha sugeriu o filme “La Belle Verde”.
Assisti ao filme uma vez só numa madrugada de insônia. Após algumas horas de sono, amanheci com os seguintes sintomas: ânsia de vômito, suor, calafrios, diarreia. O filme me provocou uma sensação similar à de uma limpeza, num trabalho de santo daime e ayuhasca. Nestes rituais, por vezes o participante vomita, evacua, urina, chora e estes canais de saída limpam o corpo daquilo que se sente como peso. Tive esta mesma experiência, mas sem fazer uso do chá, nem participar do ritual, tudo foi povocado apenas pelo mergulho de ver o filme. O alívio posterior foi igualmente equivalente e a sensação de paz e harmonia com a natureza também.
A pessoa que vive na Noruega trocou mensagens comigo que me carregaram exatamente para os últimos lugares onde estivéramos juntas nas últimas vezes que nos vimos. Me vi diante de quem eu era e quem me tornei. Quase nos encontramos em São Paulo, mas um contratempo de saúde na família, impediu que nos víssemos e não nos comunicamos mais.
Mudei de cidade, um distrito da cidade de Brotas/SP, num lugar isolado entre estâncias turísticas, plantações de cana-de-açúcar, eucalipto, laranja e alguma mata nativa (Cerrado).
Dentro da minha proposta eu deveria ficar 7 dias antes e 7 dias depois do 7 de setembro sem usar nenhuma “droga” (nenhum fármaco permitido pela lei brasileira, nem alopático, nem fitoterápico, nem homeopático). Nenhuma “droga” não permitida pela legislação brasileira, nenhum tipo de cigarro, nada de álcool, nada de açúcar e nenhuma carne. Tentei preparar meu corpo e minha mente durante um ano e me treinar para abandonar meus próprios vícios (açúcar, álcool e tabaco). Elaborei uma ação que realizaria no dia 7 de setembro em São Carlos que consistia em limpar a fachada de uma agência de um Banco do Brasil com uma réplica barata da bandeira brasileira nas imediações da avenida onde se realiza o desfile da independência. Contudo, cerca de 5 dias antes da ação, meu corpo começou a dar sinais de alerta. Havia deixado de tomar inclusive os remédios fitoterápicos que me tratam da ansiedade e rinite alérgica. Um tempo antes de ficar sem consumir açúcar de nenhum tipo por 14 dias, eu havia feito pequenas experiências de alguns dias; meu apetite e paladar, minha disposição física e concentração mudaram consideravelmente. Perto do período menstrual a necessidade orgânica que eu sentia era por cacau, não açúcar. Mas os sinais de alerta se apresentaram no meio do processo dos 14 dias, novamente aqueles sintomas dando a sensação de que o corpo queria lançar fora uma porção de substâncias ao mesmo tempo. Meu suor, minha urina, minha fome e meu paladar eram outros. Mas entre o quinto e o sexto dia acabei prostrada. Bebia água apenas. Sentia náuseas o tempo todo e fiquei sem me alimentar de nada além de água por 3 dias inteiros. Cabe ressaltar que fez bastante calor e a umidade relativa do ar esteve abaixo do nível esperado. Então veio a fraqueza física e um estado de apatia que me impedia de dar conta das tarefas cotidianas. Também experimentei uma dor de cabeça constante que suportei por 2 dias até quebrar a regra de não tomar medicamentos, quando tomei algumas gotas de dipirona monossódica. A dor passou, mas o abatimento não. Então uma amiga me deu uma solução de cloreto de sódio, cloreto de potássio, citrato de sódio e glicose. O apetite voltou, pude voltar a comer sem sensação de enjôo e a prostração foi me abandonando ao longo dos dias.
Não realizei a ação no 7 de setembro em São Carlos, mas permaneci os demais dias seguindo as regras que me impus, exceto que voltei aos fitoterápicos (passiflora alata, cúrcuma longa e extrato de própolis) antes do dia 14 de setembro.
Na elaboração da ação que se deveria realizar em São Carlos, meu personagem seria a mulher negra que lava pelo lado de fora a fachada da igreja. Tenho a pele clara e cabelo liso, meus avós maternos eram negro e branca e herdei mais da pele dela que dele. Muito embora isso, a morte de meu avô preto foi a primeira que presenciei na família e marcou todos nós com a tinta do inesperado. Em respeito a isso carrego comigo amor pelo povo preto. Essa força e esta presença é que estariam comigo na ação. Porém o que eu deveria lavar não seria uma fachada de igreja, mas a fachada de um dos Bancos do Brasil, que ficam nas imediações da avenida onde ocorre o desfile cívico. A proposta era para mim: abandonar os vícios e abandonar o ódio, apenas limpando humildemente pelo lado de fora este lugar estranho e do qual somos dependentes, o banco. Vestida de branco numa referência à pureza e depois de purificar o corpo. Essa ação pretendia também evocar a faxineira, aquela que ganha a vida, sustenta sua família e sua independência sendo invisível e tirando da frente dos olhos das pessoas aquilo que se considera sujo.
Aparentemente o ódio também causa dependência, pois decidi realizar esta limpeza usando uma bandeira do Brasil, este lugar que me acolhe e me ensina tantas histórias. Eu sempre desconfiei das histórias do Brasil que me contaram e até hoje não acredito nem nos mapas. Meus professores de geografia, geopolítica e educação moral e cívica não disseram mentiras, mas para mim, tudo que pude assimilar, não faz o menor sentido. O Brasil não é nada disso, muito menos uma bandeira. Acho que o meu povo tenta entender como é que gente gerada por estupros possa ainda assim ser capaz de tanta beleza, tanta força e tanta alegria. Eu queria era independência para ser capaz de ter fé nas forças das naturezas do meu País. Eu gostaria de afirmar que minha família e minha origem são fruto apenas do amor, mas isso não é verdade. Eu quis limpar o ódio, a mágoa e a injustiça de que meus antepassados mortos (e vivos) foram sujeitos, com um gesto. Eu quis resumir tudo e ter domínio sobre minha vontade.
Talvez tenha sido muita informação de uma vez, ou talvez eu devesse ter adotado o método de relatos diários, ou outro método qualquer para elaborar e reelaborar a ideia da ação. Talvez eu devesse ter desenhado. Talvez eu tenha só perdido a coragem para realizar tudo isso. Fato é que me senti desamparada pois esperava que as sete pessoas acionadas me falassem sobre o Brasil, ou sobre os países onde hoje vivem. Mas talvez os sete escolhidos também estejam desamparados no estrangeiro, ou tão felizes que nem tem tempo de sentir de saudades daqui.
Cabe dizer que, a meio caminho, pessoas que vivem no Brasil, mas já estiveram em outros países, se interessaram em participar da ação de alguma forma.
Cabe dizer também que esta ação me fez repensar tudo que eu tinha elaborado, experimentado e lido até então sobre drogas lícitas e ilícitas. Eu me peguei pensando que é possível e saudável manter-me fora do álcool e do tabaco, mas tendo colocado a restrição quanto aos remédios incluí até mesmo os chás caseiros. Eu deveria sobreviver sem nenhuma “dependência”, nem mesmo psicológica de remédios. Eu queria sobreviver só de alimentos e água por 14 dias. Talvez eu deva ainda experimentar fazer isso e limpar a “memória” desta maneira, sem a interferência coisas como bandeiras ou ícones vazios de qualquer gênero.
Suportar a dor de cabeça foi quase um exercício de meditação. Um enfrentamento entre a minha força e a força da dor. A intensidade da dor não era muita, a constância é que me venceu. O exercício de auto observação foi profundo, um auto-exílio. Foi como se eu me propusesse o desafio: e se me restasse só meu corpo, comida e água? Afinal só preciso disso para viver. Constatei minha “dependência psicológica” ou “fé” nos remédios - maior que minha fé em deus. A despeito disso, tenho plena ciência de que se me restasse só meu corpo, comida e água, poderia viver e bem por longos anos, tantos quanto ainda houvesse, sem remédios. Com ou sem deus. Deus não enfrenta a dor física por mim, embora possa aliviá-la se ativarmos um acordo amoroso entre nós - caso exista de fato esta separação semântica que obrigue ao uso de mais de um pronome (eu, ele, nós) ou caso a máxima “Vós sois deuses” seja falsa.
Finalizo este relato no outono brasileiro de 2015, ainda buscando liberdade e domínio sobre a vontade. Ainda sem compreender com o corpo palavras como “vício”, “virtude”, “dependência”, “independência”, “remédios” e “cura”. Ainda com saudades de brasileiros que vivem em outros países e por demais saudosa da história do Brasil que escreverei no/com meu corpo.




Um comentário:

Anônimo disse...

Lindo texto, Dinha! Bela experiência, vivendo o presente.

Miky.