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segunda-feira

De como cheguei até aqui numa tarde de outono

Tem uma história de que se uma mulher parir seis meninas e o sétimo filho for menino, será lobisomem. Pelo avesso disso, minha avó pariu sete meninos-homens e a primeira menina foi aquela que seria minha mãe. A ela se seguiram outras duas meninas, inteirando dez filhos. Em pequena ela adoeceu, tinha convulsões, que o povo daquele tempo só sabia tratar com reza. Curou. Os meninos adoeciam e morriam um por um, até que todos. Ela vingou, cresceu, passou fome, apanhou, saiu do Pernambuco, foi pro Paraná, depois pra São Paulo onde trabalhou, trabalhou, trabalhou e trabalhou. Um dia mandou uma carta a um programa de rádio, queria conhecer um rapaz. Choveram respostas, mas ela se interessou por uma em especial. Um moço nordestino também, mas estava preso. Ela deu a ele liberdade e uma filha. Se hoje em dia ser mulher de ex- detento e mãe solteira é difícil, há trinta anos era bem mais. Mas era a primeira filha, a primeira neta, era eu. Dois meses depois que nasci, meu pai sumiu. Três anos depois, meu avô morreu. Cresci em meio às mulheres da família, sem irmãos, brincando com folhas de árvore, bonecos de papel, vendo TV em preto e branco, buscando água na bica e assistindo os benzimentos que minha avó fazia nas crianças com cobreiro, bucho virado e quebrante. Meu sonho era ir pra escola. Quando comecei a ler decifrava nos muros a frase “Diretas Já”. Quando foi com 10 anos, o juiz mandou eu ir morar com minha mãe que tinha sua doença mental sim, mas era minha mãe. Lá fiquei até os 20 anos, sem mais contato com o restante da família. A periferia onde morei dava de brincar na rua, tinha um parque perto (que existe até hoje) e eu era uma aluna mediana que pulava o muro da escola pra cabular aulas me achando a mais revolucionária das criaturas aos 12 anos. Brinquei na rua, dancei lambada, escrevi diários, quase repeti em matemática, fiz amigas pra vida inteira, gostava dos meninos, apanhava de algumas meninas e batia em um moleque maior que eu. Gostava mais das brincadeiras de menino: carrinho, pipa, bolinha de gude, subir nos muros... Por causa disso diziam que eu era sapatão. Tive um grande amigo que também diziam que era viado porque só andava com as meninas. Tive amigas japonesas daquelas quase legítimas que brincavam comigo de teatro de bonecos, rádio e fundamos uma organização defensora da natureza que tinha até um logotipo. Comecei a me interessar por fanzines depois de conhecer uma moça que se apaixonou por mim sem eu saber, o fanzine dela era sensacional, se chamava Pastiche. Fui estudar pra professora porque meu sonho de fazer cinema não iria trazer arroz e feijão pra casa. Perdi meu primeiro emprego registrado no dia em que briguei feio com meu primeiro namorado: eu fazia magistério pela manhã, trabalhava numa escolinha de educação infantil à tarde e fazia cursinho à noite e nos fins de semana, tinha então 19 anos. Com vinte, já namorava outro moço e passei no vestibular em São Carlos. O namoro acabou e o curso de Imagem e Som na UFSCar (terceira turma) não era lá muito estruturado, mas morar no alojamento estudantil, andar por aí de carona e consumir maconha, tabaco, cocaína, LSD, anfetaminas, cogumelos, êxtase, cola, remédios, lança-perfume, cerveja e pinga, pinga muita pinga... fez de mim uma pessoa bastante diferente do que eu era, me aproximou e afastou da minha essência diversas vezes. Nesse tempo, minha família me dizia para tomar cuidado porque na faculdade pública tinha muito ateu e muito comunista. Nesse tempo, minha mãe já aposentada e sem minha presença perto mergulhou na sua doença novamente. Por muito tempo fiz o trajeto São Paulo- São Carlos todo fim de semana a fim de cuidar dela e terminar o curso, mas nem isso nem aquilo. Desisti do curso, voltei pra São Paulo. Desisti de São Paulo, voltei pro interior e trouxe mãe comigo. Tomei ayhuasca, daime, fiz Yoga, dei aulas de artes, gramática, literatura, teatro, pra crianças, adultos, adolescentes... tive banda, fãs, alunos, elenco, amores, diretores, paixões e paixões sem conta. Vivi meses a fio sem um real no bolso e uma vez passei uma semana em Pernambuco com R$25,00 na carteira. Tive doenças mentais, sofri violências, testemunhei injustiças. Fiz parte de ao menos 3 grupos de teatro expressivos, fiz parte de duas ONGs, prestei outros 3 vestibulares mas não terminei nem mesmo o curso de Imagem e Som. Depois de 9 anos trabalhando com carteira assinada na Escola Caaso, pedi a conta. Depois de 15 anos morando em São Carlos, mudei de cidade. Hoje acho que sou meio budista, meio macumbeira: brasileira. Time? Torço pro Santos quando não dá preguiça. Gosto de meninos e meninas que nem o Renato Russo e estou solteira. O signo é aquário e o ascendente é touro, o que me faz uma pessoa sem noção e teimosa, um perigo! Sou anarquista e adoraria trabalhar fichada de novo pra ser anarco sindicalista. Sou bem tímida e antissocial, embora eu disfarce bem (acho eu). Sou capaz de muito amor e muito ódio. Adoro papo furado, piada besta, gosto de sexo, odeio operadoras de telefonia celular; um dia quem sabe eu adoto uma criança, gosto de estar em cena, adoro ser andrógina. E hoje nesta tarde morna de outono, meu sonho é fazer um livro, uma publicação artesanal e viajar pra fora do Brasil de novo.

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