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quinta-feira

E quem se apaixona pela travesti?

Uma palavra não me define.
De quantos filósofos masculinistas precisamos para concluir que a única conclusão é a morte? Sei lá. Não passei no vestibular pra filô e meus estudos autodidatas nesse sentido não andam quantitativos, conquanto acho significativo o que tange ao afetivo.
Posto que tava pensando essa semana sobre amor e paixão. Nunca sei o que responder quando perguntam se estou apaixonada. Isso incomoda um pouco.
Diz que paixão tem aquela do messias na cruz, o sofrimento extremo de dar a vida pelo outro. O ápice da compaixão e do amor por todos os serhumaninhos. E aí as coisas dão uma pulada aleatória nas ligações neurotransmissoras da eletricidade cerebral aqui; reza a cartilha das neurociências que somos impulsos elétricos, que tudo é comandado pelas informações que passam de um neurotransmissor a outro e talz e quando o encaixe dessas celulinhas não orna, o dito impulso não passa direito, ou a eletricidade não flui, rola um curto-circuito, coisas assim. Um lance de quebra-cabeças eletrostático - perdoem a morbidez do humor na lembrança das milhares de cabeças que foram quebradas e estudadas até chegar nissaê.
Pois bem, nessa lógica aprendi que paixão no sentido popular (não o do messias) referia-se a impulsos elétricos, sudorese, fogo no olhar... não exatamente localizada no cérebro, mas mais embaixo, podendo nascer no plexo solar da caixa do peito ou (descendo ainda mais da goiabeira) na pelve mesmo. E aí as ciências divergem se é o cérebro que mandou os impulsos pra baixo ou se os impulsos subiram e mandam na cabeça, tronco e membros. Mas tudo isso é contr@verso porque nem mesmo se concluiu ainda se a tal da psicanálise é ciência.
De experiência própria, só sei que minha (boa?) educação me disse que era errado apaixonar-se pelas pessoas e que isso só prestava pra sofrer e escrever poesia. Bom mesmo era amar, porque no amor já não cabe eletricidade nenhuma, nem em cima ou embaixo (essas hierarquias bestas), nem corpo repartido, nem (com)ciência. Porque quando a gente ama já não existe mais ego-eu. Quando a gente ama é agente. Ainda que eu tentasse ser uma aluna aplicada em tudo, sempre fui medíocre e não contrariei as estatísticas, tendo me apaixonado inúmeras vezes (desde a idade de 6 anos) até hoje. Na maioria das vezes por pessoas do sexo oposto, mas várias vezes por mulheres da minha idade. Só que daí vem a treta. Apaixonar-se já estava errado em tese. Por pessoas do mesmo sexo parecia ainda mais errado. Mas na minha casa onde só convivi com mulheres, nada mais natural que gostar de mulheres, não? Talvez não.
Só sei que mesmo anarquista convicta, hierarquizei as paradas: amor vale mais, paixão vale menos. Até que li o Manuel Bandeira:

"Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não."

Como eu só tenho este corpo - estreito corpo - para entender o amor e a paixão parei com a tal divisão, hierarquização e separação. Parece que o amor vem mesmo do corpo. Mesmo aquele do messias. Tanto que as pessoas comem o corpo dele. Li também que para ser poeta (e artista) é preciso estar disposto a experimentar tudo. É ter um corpo disponível. Daí que eu sempre estive disponível para os mundos das ideias e nunca das práticas, então quando atravessei a derradeira portada da adolescência - e entenda-se aqui adolescer como um florescer sexualmente, no mundo dos corpos que se entendem - tentei parar de escrever poemas ruins para viver o incomunicável. Aquilo que não cabe nem na palavra esmerilhada de poeta.

Abro grande parêntesis
E é bom já ir deixando claro que acho hipócrita e falta de empatia com a Damares que sofreu abuso sexual na infância ficar chamando ela de histérica e louca. Claro que um messias, um buda, um anjo, orixá ou qualquer ser de luz subiria na goiabeira para consolar uma criança em tal estado de sofrimento mental. Também sofri abuso sexual na infância e quem cometeu foi outra criança. Não cabe hierarquizar de novo porque não se mede sofrimento nem desgraça: o nome já diz que ali não está a graça do amor, das deusas, das musas ou do que seja. Ali os corpos não se entendem, nem as almas. Damares não reagiu com ódio, onde Eros não está está Thânatos. Ela escapou para inaugurar a era do rosa-azul. Eu escapei para sair do armário para minha família evangélica.
Fecho parêntesis

Voltando à fruta comum: maçã. Eva, Lilith, serpente e tudo mais... Mordi. Chupei. Comi. Demorou, mas gozei. Impulsos elétricos. Meus estudos mostram que a neurociência acertou. O amor, a paixão, o ódio, a morte... tudo isso se converte em energia que segue por dutos dentro da gente e flui e nos torna o que somos.
Mas isso não me faz responder com precisão ao "está apaixonada?". Sempre tendo a dizer que sim. Eu sou aquela que se apaixona pela travesti, pela puta. Mitifico antes de tocar. Platonizo ainda. Se beijar então... VirgemdosmeusDesejos!!! Mas cultivo os amores hoje e as paixões com o mesmo esmero.
Gosto de tocar e ser tocada e de estar perto. Tanto minha alma como meu corpo, Bandeira, hoje parece que entendem mais disso.



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