Páginas

terça-feira

Onde dói a força

Ela me contou que ganha mil reais e paga seiscentos de aluguel. Que criou o filho até sua primeira infância sem receber pensão pra provar que podia. Ela cuida da mãe, trabalha quarenta horas semanais, cuida da casa, vai no samba e está sempre online. Ela namora, cozinha, vende, provê, organiza, cura, ora, dirige, fala pelos cotovelos, mas cala bem onde dói.
Ela me contou que no começo era conhecida por ser a irmã dos meninos. Depois que cresceu virou a irmã do cara da banda. Depois que casou virou a mulher do hômi. Depois que teve filho virou a mãe da menina. Ela nunca foi ela. Ela faz arte, sabe fazer partos, produzir artistas, cozinha, lava, organiza, cura e gargalhando conta que seu bom humor é mau. Mas cala bem onde dói.
Ela me contou que está sem paciência pra ele porque é tudo novo agora com as crianças e ele é lesado e não tem noção de nada. Não quer morar com ele, não quer depender dele pra nada. Quer provar que pode criar as filhas sozinha. Estuda, trabalha, amamenta, ajuda a mãe, organiza, faz arte, vende, cozinha, dança, pesquisa. Mas cala bem onde dói.
Ela me contou que a mãe batia e o pai não dizia nada, que sua filha tem depressão, que o namorado traiu, mas agora ela não tá mais nem aí. Ela já se aposentou mas ainda trabalha, cozinha, faz dieta, artesanato, fotografa, fala pelos cotovelos. Tem dias que cala bem onde dói.
Ela me contou que se apaixonou, mas que ele quis uma relação aberta. Ela ficou com ciúmes e se sentiu culpada pelo apego e por não ser espiritualmente evoluída pra aceitar ele com outras pessoas. Ela chorou quando doeu e depois foi embora. Jogou suas roupas fora, doou seus livros, vendeu os discos e o carro e comprou passagem só de ida.
Ela me contou que só muito tarde é que teve um orgasmo na vida, que conta nos dedos os namoros que teve e que seu coração agora está vazio. E cala bem onde dói.
Ela me contou que ainda sente vontade de transar com ele, mesmo depois do abuso e das outras agressões. Ela saiu solteira pra beijar homens e mulheres, mas como só tinha ele na cabeça ficou só.
Ela escreveu uma declaração de amor pra si mesma.
A outra deixou o filho com o pai e saiu solteira pela noite enluarada.
Uma ainda fez o mapa astral todinho do rapaz pra ver se combina com o seu.
Eu ouvi tudo calada, suspirando bem onde dói.

(não há personagens fictícias neste conto)

Nenhum comentário: